Há muitos anos, quando procurava a minha identidade açoriana, descobri Adelaide Freitas. Tinha entrado no Gil, aquela livraria antiga de Ponta Delgada, como se fosse um detective a perseguir uma pista, à procura de livros que me pudessem ajudar a compreender a minha identidade de açor-canadiano, quando avistei um livro na prateleira que, imediatamente, captou o meu interesse. Nas Duas Margens: Da Literatura Norte-Americana e Açoriana (2008). Era uma colectânea de textos, alguns escritos em inglês, que exploravam temas de identidade e pertença, ideias que me tinham preocupado por longos anos.
Quando regressei a Toronto, li e descobri uma riquíssima obra que incluiu estes ensaios: Saudade: Language as Survival; Islands: Dream and Reality – Historiographic Metafiction in Azorean Literature; Os Açorianos em Moby Dick. Cada ensaio ia-me iluminando sobre escritores açorianos e os da diáspora americana. Foi esta colectânea que, precisamente, me ajudou a compreender a minha identidade. De vez em quando volto a ler os textos, e descubro novas perpectivas e respostas às dúvidas que tenho tido ao longo dos anos sobre quem sou eu.
Recentemente, vim a conhecer a tradutora americana, Katharine Baker, que estava a traduzir o romance da Adelaide Freitas, Sorriso por Dentro da Noite (2004). Quando esta soube que tenho raízes açorianas, que a família do meu pai era oriunda da Achada, a aldeia vizinha da Achadinha, onde Adelaide tinha vivido, a Katharine convidou-me a participar na tradução do livro para inglês.
Foi assim que começou a minha leitura do texto da Adelaide. A sua escrita, uma prosa poética e quase mística, é difícil de traduzir para outra língua. Mas espero que um dia este romance ímpar esteja disponível para o leitor anglófono. Quero que possa ler esta estória que descreve, com profundidade e beleza, a condição e as consequências dolorosas da nossa imigração. A protagonista, a pequena Xana, parte-nos o coração, especialmente para aqueles que, como eu, tiveram a experiência de perder a família alargada pela inevitável imigração que foi a praga dos Açores.
Adelaide Freitas ficou muda devido a uma doença que, ironicamente, lhe roubou a fala e a possibilidade de escrever. Seu marido, Vamberto Freitas, um homem também de letras, crítico literário e importantíssimo detentor do conhecimento da literatura açor-americana, corajoso no amor que lhe dedicou, ficou de sentinela ao lado da sua amada Adelaide.
Num dos posts no seu blogue, em janeiro deste ano, escreveu sobre ela, partilhando com os seus leitores como lia as palavras escritas pela Adelaide, então repousando em silêncio no quarto, enquanto ele procurava conforto na leitura delas. Aqui está o poder e a ternura da palavra, que ultrapassa o mundo físico, para nos unir e nos tornar vivos perante a língua. Através da palavra escrita, os dois mantinham-se em comunhão.
A comunidade açoriana recebeu a triste notícia da sua morte, a 6 de junho, e enlutou-se pela perca desta voz inteligentíssima, que escreveu, tão eloquentemente, sobre nós, os que vivemos à margem da cultura açoriana, do nosso lugar na sociedade canadiana, através da literatura como veículo para nos entendermos a nossa experiência colectiva.
Eu também lamento a perca desta voz, que apesar de nunca ter conhecido pessoalmente, conheci pelos seus textos. Eles continuam a ter a mesma relevância para mim como naquele dia em que li Adelaide Freitas pela primeira vez.
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